A crítica à desinformação na série Sex Education; pôster oficial da Netflix da terceira temporada de Sex Eeducation

A crítica à desinformação na série Sex Education

Para especialistas e fãs da série, a nova temporada trouxe assuntos muito relevantes ligados à educação sexual, como sequelas do assédio e não-binariedade

 

Com sensibilidade, a série Sex Education, da Netflix, reforça a importância de naturalizar a conversa sobre sexualidade. Ao longo de suas três temporadas, foram levantados assuntos como disfunções sexuais, infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), aborto, feminismo, orientação sexual, assédio, entre muitos outros. Na terceira, a mais recente delas, a criadora Laurie Nunn leva o debate sobre educação sexual ainda mais além ao realizar uma crítica ao moralismo que impede o acesso a informações fundamentais sobre a saúde e a sexualidade. Além disso, também aprofunda a história dos personagens, retratando diversos conflitos relacionados ao sexo típicos da adolescência.

Os oito episódios disponibilizados na terceira temporada foram muito aclamados pela crítica. Na visão dos fãs, a série se superou e alcançou suas expectativas. “Gostei muito dessa temporada, foi muito bem desenvolvida. Adorei os rumos que os personagens tomaram, achei que eles amadureceram muito”, opina Isabela Tumolo, 17 anos, estudante e fã de Sex Education. Para Victoria Camilo, universitária de 19 anos, foram levantadas reflexões muito relevantes para a atualidade, dando ainda mais destaque para questões LGTBQIA+.

“Eu amei o desenvolvimento dos personagens que eram vistos mais como ‘vilões’ nas primeiras temporadas. A Ruby foi uma surpresa muito positiva para mim, porque achei que estavam forçando muito a imagem dela como uma menina super controladora e fetichizada”, diz Victoria. A humanização de personagens que não receberam tanto destaque nas outras temporadas foi uma estratégia muito interessante para ela. “Acho que é importante fazer isso, porque senão fica muito difícil acompanhar algumas cenas com personagens que você começa a não suportar”, relata.

Adam e Michael Groff também tiveram uma ótima recepção nos novos episódios ao ganharem mais tempo de tela. “Deu para ver como a questão de ser opressor e fazer bullying com os outros era muito internalizada no Adam. Ao conhecermos a história do pai dele, que também sofreu na infância, dá para ver como isso pode ser passado de geração em geração”, ressalta Isabela.

O programa fez um enorme sucesso não apenas entre os adolescentes, como também entre os adultos e profissionais da área. “Sex Education é uma série muito especial. Tinha tudo para ser uma história cheia de clichês e estereótipos, mas acho que é o contrário disso, porque ela traz com muita naturalidade e responsabilidade assuntos que são indispensáveis”, aponta Bruna Zimmermann, psicóloga e sexóloga. Para a especialista, a série oferece conteúdos muito ricos sobre sexualidade e não se limita a um olhar masculino, mas dá voz para as personagens femininas para falar sobre desejo, prazer e iniciativa. “É uma série que educa e diverte ao mesmo tempo”, acrescenta.

Sexo e sexualidade

“A educação sexual faz parte da formação humana de cada um, porque a sexualidade é uma peça fundamental da nossa construção como indivíduo”, aponta Bruna Zimmermann.

A sociedade tem costume de falar de sexo e sexualidade como sendo o mesmo conceito, mas não é, segundo a especialista. “Sexualidade é um conceito muito mais amplo, tem a ver com os nossos desejos, nossa identidade, nosso corpo, nossos limites, ou seja, é muito mais do que o sexo em si”, explica. Para a sexóloga, a sexualidade está associada com a forma como cada um lida com seu mundo interno, suas emoções e valores, e também com o mundo externo. 

“O sexo pode estar incluído nesse contexto e ele vai acabar aparecendo a partir da adolescência, mas, na nossa sociedade, tendo a sexualidade como um tabu, nós vamos ter contato primeiro com o sexo com o outro antes mesmo da gente entrar em contato com a nossa sexualidade, nós desconhecemos a nossa sexualidade”, destaca Zimmermann. Com isso, é possível que a pessoa se torne mais vulnerável a relações abusivas ou a ter ISTs, por exemplo. Sem contar com a falta de conhecimento sobre o próprio corpo.

A educação sexual é fundamental para a vida e bem-estar de cada um, garantindo uma sexualidade mais saudável e prazerosa. Conheça os principais benefícios que ela pode trazer de acordo com Bruna Zimmermann:

  • Sexo seguro;
  • Prevenção de violências e relações abusivas;
  • Menor número de gravidezes indesejadas;
  • Menos ISTs;
  • Relação de mais respeito e prazer consigo e com o outro. 

A importância do acesso à informação

Na terceira temporada da série, são apresentados novos personagens que passam a fazer parte do universo de Sex Education. Moordale Secondary School ganha uma nova diretora, a Hope, que está determinada a limpar a reputação do colégio, deixando para trás o título de “escola do sexo”. No entanto, seus posicionamentos são bastante questionáveis, principalmente em relação à educação sexual. Não há dúvida de que era necessário realizar mudanças no currículo de educação, pois os alunos não eram bem informados, o que levou a episódios até mesmo com teor cômico, como o “surto de clamídia”, nas primeiras temporadas. Mas Hope resolveu tomar um caminho retrógrado ao recomendar a abstinência do sexo durante a adolescência.

Bruna Zimmermann, psicóloga e sexóloga/ Foto: arquivo pessoal

“Educação sexual não é ensinar abstinência. Educação sexual é falar sobre identidade, sobre questões de gênero, sobre sexo, prazer, corpo e contraceptivos”, afirma Zimmermann. Ao impor a abstinência como método de contracepção, Hope age de forma autoritária, pois a saúde sexual é um direito de todos e ela está disseminando a desinformação. “É preciso dar aos jovens e a todos os indivíduos a possibilidade de escolha. Para isso, é preciso dar conhecimento e informação. A educação sexual estimula o autoconhecimento, o autocuidado, o auto respeito para que cada um possa escolher como quer se prevenir com responsabilidade”, diz a sexóloga.

Segundo Zimmermann, o melhor caminho para cuidar da saúde sexual dos alunos é expor dados importantes e verdadeiros sobre a sexualidade. Dessa forma, eles podem debater, conversar, refletir e tirar dúvidas. “Impedir que os adolescentes transem no pico hormonal do desenvolvimento não é possível. A adolescência é uma fase de descobertas, de curiosidade, de hormônios à flor da pele, então, não dá para pregar a abstinência”, aponta. 

A forma como Hope conduz a escola é bastante emblemática, pois seu objetivo parecia ser extinguir o sexo do vocabulário dos alunos. A especialista concorda com o pensamento de Jean Milburn, que é sexóloga na série: “Eu gosto muito da forma como a Jean trabalha e eu acho que ela teria total jeito para lecionar a educação sexual na Moordale Secondary, eu trabalharia de forma bem parecida”.

Apesar de ser considerada a grande vilã dessa temporada de Sex Education, há momentos da série em que os espectadores conseguem sentir empatia por Hope. Sua vida fora da escola também é retratada e é descoberto que ela está fazendo tratamentos para engravidar, mas sem sucesso. No entanto, para Isabela e Victoria, essa parte da história poderia ter sido ainda mais desenvolvida.

“Gostaria de entender melhor porque ela é assim com os alunos, porque ela é tão rígida e tão conservadora”, aponta Isabela. Para Victoria, o lado da infertilidade de Hope também deveria ser mais explorado: “Podia mostrar mais como isso afeta a sua relação com o marido e a sua própria autoconfiança por se sentir incompleta por não conseguir gerar um filho”.

As sequelas do assédio

Ao longo dos novos episódios, os espectadores acompanham a trajetória de superação de Aimee, que foi assediada sexualmente em um ônibus no caminho para a escola na temporada anterior. Este ocorrido mexeu profundamente com o seu psicológico. Há cenas em que Aimee diz que se sentia culpada por ter sorrido para o homem que a assediou. “Essa é uma reação bem comum de vítimas de abuso. Como vivemos em uma sociedade patriarcal, que coloca as mulheres sempre nesse lugar de objetificação, elas acabam achando que fizeram algo para provocar esse abuso. Mas a culpa da violência nunca é da vítima”, explica Bruna Zimmermann.

Além disso, Aimee tem problemas de intimidade com o seu namorado e diz não se sentir confortável com o próprio corpo. “É comum meninas ou mulheres se sentirem desconfortáveis ou não se identificarem mais com alguma parte do seu corpo que seria, na mente delas, o causador daquela violência”, diz a especialista. Assim, de acordo com Zimmermann, elas podem parar de ter relações sexuais e deixarem de se relacionar, como ocorre com Aimee, além de deixarem de cuidar do corpo, seja na higiene ou desencadeando um quadro de compulsão alimentar, evitarem se tocar e se masturbar. “Todas essas são formas que elas encontram de se desassociar da lembrança daquele sofrimento”, afirma.

Para lidar com a situação, Aimee decide recorrer à Jean por ajuda. “Gostei de ver como a série mostrou isso, porque você não supera as coisas de noite para o dia, ninguém é de pedra para fazer isso”, aponta Isabela. Durante as consultas, ela começa a trabalhar as suas inseguranças e passa a se conhecer melhor. Inclusive, ela diz que sempre achava sua vulva estranha, mas ao conversar com Jean, descobre que todas as vulvas são únicas, podendo ter diversas cores e formatos. Por este e outros motivos, Zimmermann acha muito interessante que jovens busquem sexólogas para lidar com questões ligadas à sexualidade, apesar de não ser muito comum.

Identidade não-binária

A crítica à desinformação na série Sex Education; ilustração bandeira não-binária

Na nova temporada da série Sex Education, é apresentade Cal, que identifica-se como uma pessoa não-binária. A partir de Cal são levantadas reflexões extremamente relevantes. Elu se torna o interesse amoroso de Jackson, mas o relacionamento acaba não indo para frente. “Achei muito importante Cal ter uma relação com o Jackson e os dois entenderem que ele não estava preparado para estar em uma relação queer, porque ele ainda via Cal como uma mulher, sendo que elu não é uma mulher”, destaca Isabela.

Outra cena que chama atenção é quando as aulas de educação sexual são divididas entre meninos e meninas, mas Cal não se sente confortável em entrar em nenhuma das aulas por não se identificar com nenhum desses gêneros. “A educação sexual também é uma forma de falar de identidade de gênero, por isso, deve ser acessível para todos os alunos. É preciso que haja espaço para esse diálogo para abordar questões da diversidade e promover um ambiente de respeito em relação às diferenças”, afirma Zimmermann.

Embora a representatividade não-binária em Sex Education tenha sido extremamente necessária, internautas não ficaram completamente satisfeitos com a forma como o gênero foi retratado na série. Alguns opinaram que os episódios ficaram muito presos na questão do uso do binder, conhecido também como atadura torácica, que é bastante usada principalmente por homens trans, pessoas não-binárias e de gênero fluido para achatar os seios. Segundo os internautas, era preciso que essa parte fosse mais desenvolvida e torcem para que seja mais explorada na próxima temporada.

Proibição da diversidade sexual na Nigéria

Outro assunto importante abordado na temporada foi a proibição da diversidade sexual na Nigéria. De acordo com o Capítulo 21, Artigos 214 e 217 do código penal nigeriano, é ilegal ser LGBTQIA+ e a pena por tal delito pode chegar a 14 anos de prisão. “Achei muito necessário retratar a questão da Nigéria, com o Eric tendo que ter todo aquele cuidado para ninguém perceber e se esconder dos parentes”, ressalta Victoria. 

Quando chega ao país, Eric precisa usar roupas diferentes das que gosta de usar na Inglaterra e precisa atentar-se até mesmo com a forma como se comporta em público. No entanto, enquanto está na Nigéria, Eric vai a um bar gay e descobre um novo lado da sua personalidade. Ele sente uma maior liberdade em relação à sua sexualidade, especialmente por entrar em contato com mais pessoas LGBTQIA+. “Ele percebe que está preparado para outras coisas, está em um outro capítulo da vida dele”, aponta Isabela.

Gravidez em idade avançada

No fim da segunda temporada, descobrimos que Jean está grávida e, nos novos episódios, acompanhamos a sua gravidez. Ela é muito julgada pelos médicos por ter escolhido seguir com o bebê mesmo sendo mais velha. “Os riscos de uma gravidez em idade avançada existem e precisam ser expostos. Mas a função do médico nunca deve ser julgar de acordo com as próprias vivências, colocando os próprios preconceitos”, afirma Bruna Zimmermann.

Para a sexóloga, este julgamento é resultado do pensamento preconceituoso que descarta os mais velhos por teoricamente não serem mais produtivos para a sociedade. “Eu percebo que isso é um reflexo da nossa cultura moderna que supervaloriza a imagem, a beleza, a juventude. Quem está fora desse padrão e, por exemplo, não é jovem, sofre preconceito e é colocado à margem, que é o que acontece com a personagem Jean”, relata a especialista.

Repleta de reflexões e temas relevantes, a série Sex Education consegue mais uma vez conquistar o público com sua nova temporada. O programa mantém a leveza a partir do carisma dos personagens ao mesmo tempo em que faz críticas e dissemina informações sobre educação sexual. “A série trata tudo de uma forma muito saudável, madura e acessível para quem está entrando nesse mundo, para jovens, para velhos ou para quem estiver assistindo”, finaliza Victoria.

Imagens: Netflix (divulgação)/ Canva

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