Queernejo diversifica narrativas e traz vozes LGBTQIA+ para o sertanejo

Queernejo traz novas narrativas e vozes LGBTQIA+ para a música sertaneja

Seja com o sertanejo raiz ou universitário, o movimento mantém referências da música sertaneja tradicional, mas valoriza a representatividade

 

Mesmo que nomes como Marília Mendonça, Jorge & Mateus e Luan Santana não tenham muito espaço na sua playlist, é fato que a música sertaneja está sempre no topo das paradas musicais brasileiras. De acordo com um levantamento realizado pelo G1 com dados do Spotify, entre as dez músicas mais ouvidas no país no primeiro semestre de 2021, sete são sertanejas. Entretanto, além da música sertaneja mais tradicional, existe um outro gênero que mantém seu ritmo e essência, mas ressignifica suas narrativas: o queernejo.

Resgate sertanejo na comunidade LGBTQIA+

O nome “queer” é usado como um termo guarda-chuva que engloba, de forma geral, todos os indivíduos que não se identificam com os padrões de heteronormatividade e cisgeneridade. Assim, o Queernejo é um movimento de artistas que estão envolvidos com a música sertaneja, mas buscam trazer uma representatividade da comunidade LGBTQIA+ ao gênero musical.

Gabriel Felizardo, conhecido no meio artístico como Gabeu, foi um dos primeiros artistas a trazer a vivência LGBTQIA+ ao sertanejo. Filho do cantor Solimões, da dupla sertaneja Rionegro e Solimões, Gabeu sempre viveu sob influência desse estilo musical por conta do pai, mas, como um homem gay, sempre teve receio de seguir o caminho no sertanejo. “Eu sempre ouvi que sertanejo é coisa de ‘macho’, de ‘bruto’, então pensava que não era pra mim e ia me afastando”, explica o cantor em entrevista à Viés.

Sempre atento às tendências do mercado independente e da música pop, Gabeu observou uma cena musical se aquecer com referências queer, especialmente no nordeste, com gêneros como o tecnobrega, brega funk, dentre outros. “Quando eu vim pra São Paulo, também comecei a ver uma cena de hip hop, de LGBT’s da periferia de São Paulo. Então fui observando a galera fazendo seu próprio resgate cultural e senti que precisava fazer o mesmo em relação à minha vida, minha cultura e vivência.” A partir daí, o jovem lançou em 2019 seu primeiro single, Amor Rural, um grande marco para o queernejo e para sua carreira.

“Meu namorado compôs o refrão de Amor Rural com um tom de brincadeira, e a coisa acabou virando realidade, foi tomando forma e ficando sério. E decidi que aquele seria meu primeiro single, e poderia ser um pontapé para uma coisa maior no futuro.”

Muito ligado ao sertanejo raiz, Gabeu ressalta que o queernejo é também uma forma de fortalecer a música sertaneja mais tradicional e conhecida pelo público, conservando todo seu valor cultural e importância para a música. “Eu acho que ao mesmo tempo que a gente tem levantado essa bandeira da representatividade, questionando várias questões sobre o preconceito, homofobia e transfobia, a gente também tá fazendo um resgate de um sertanejo, de uma musicalidade, uma cultura que já foi e hoje não prevalece mais”, diz. “Isso tem um valor muito grande pra se perder ao longo da história”.

Do raiz ao universitário

Além de seu potencial de resgate e ressignificação da cultura sertaneja para os dias atuais, o queernejo também está presente em vertentes mais modernas e que atingem grandes públicos, como o sertanejo universitário.

Popularizado com duplas como Jorge & Mateus, Marcos & Belutti e João Bosco & Vinicius, hoje o queernejo também conta com representantes desse estilo sertanejo, com a dupla Mel & Kaleb.  Formada em 2020, a parceria de Melizza e Kaleb, ambos com 32 anos, estreou  no Fivela Fest, um festival online de queernejo que contou com 7 horas de shows e debates entre os artistas do movimento. Trabalhar com música era o sonho de ambos, que hoje fazem da dupla a maior parte de sua carreira profissional. “Eu já tinha tentado montar uma dupla sertaneja com uma amiga minha que tinha uma banda de gauchesco, mas eu não me via nesse meio hétero cantando”, explica Kaleb. “Agora o sertanejo voltou com Mel & Kaleb, e eu estou amando representar nosso LGBTQIA+ no queernejo.”

Envolvida com a música desde os 14 anos, Mel ressalta que trazer essa representatividade ao sertanejo universitário foi muito importante, e que o trabalho da dupla vem conquistando números expressivos nas plataformas digitais. “Logicamente já existem artistas fazendo sertanejo no meio LGBTQIA +, que hoje temos contato diário, mas não tinha aquela dupla pra trazer o sertanejo universitário, que é algo mais dançante, com letras mais engraçadas. A gente vem com a moda”, comenta. 

Representatividade para artistas e ouvintes

Ao possibilitar com que artistas LGBTQIA+ se consolidem no sertanejo, esse gênero musical se fortalece e traz representatividade para todos da comunidade que se identificam com a musicalidade sertaneja, mas se afastaram pelo distanciamento em relação às narrativas.

Nas músicas de Mel & Kaleb, os temas retratados fogem do padrão do sertanejo tradicional, como explica Mel. “Aparentemente, são músicas muito comerciais, com refrões e melodias fáceis, mas se a gente parar pra explicar, tem todo um fundamento por trás. São coisas às vezes não faladas no sertanejo hétero.” Em Rascunho da Decepção, por exemplo, um dos singles lançados recentemente, há uma voz dupla na letra, uma de Mel e outra de Kaleb. “Eu falo “dela” e o Kaleb fala “dele”. Essa música tocou na rádio, então pensa a galera ouvindo e pensando “mas ela tá falando de uma mulher, e ele de um homem?”.

Na produção do EP “Quase Nada”, Mel & Kaleb formaram uma equipe com mais de 50% de integrantes LGBTQIA+. Para um dos clipes, 100% da equipe foi formada por mulheres.

Para a dupla, esse foi um aspecto muito importante e buscado para que a música produzida fizesse o público se sentir representado, mas também para que outras pessoas do meio musical pudessem ter oportunidades. “Isso de ser a maioria mulheres e LGBTQIA+ mexe em um aspecto sobre a nossa representatividade, nosso papel ali no meio. A galera não dá oportunidade, é um meio muito fechado, muito hétero, e é por isso que estamos batendo nessa tecla, e se não tiver só LGBTQIA+, vamos trabalhar só com mulheres, porque é a forma que a gente tem de trazer nosso povo perto da gente e levantar nosso meio.”, diz Kaleb. “Antes disso eu também não tinha essa visão, e aos poucos vai caindo as fichas do tanto de oportunidade que a gente perde por conta de um mercado muito machista e homofóbico.”

Gabeu também comenta que, por meio dessa presença de artistas LGBTQIA+ falando sobre temas com os quais a comunidade se identifica, é possível reaproximar do sertanejo esse grupo que, assim como ele e vários outros artistas, se sentiam deslocados no sertanejo. 

“A partir do momento que a gente coloca uma figura que se parece com a gente, que a gente se identifica lá dentro, a gente começa a se sentir mais possível num ambiente e contexto que foram negados pra gente a vida toda.”

 

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Para conhecer mais do queernejo

Se você ainda não conhecia o universo do queernejo, Gabeu ou Mel & Kaleb, mas quer saber mais sobre esse estilo musical, você pode começar com algumas músicas sugeridas pelos próprios artistas.

“Bailão”

Gabeu indica Bailão, uma das produções de seu primeiro álbum de estúdio, o AGROPOC: “Eu acho que ela é um resumão. É animada, é caricata. Além disso, apresenta o conceito do álbum, vai pra um sertanejo dos anos 2000 que eu curto muito e é também inspirado nas músicas do meu pai. A pessoa pode ouvir e enxergar o Rio Negro e Solimões, mas também enxergar a Lady Gaga. Então ela pode ser essa porta de entrada para quem não conhece.”

Para Mel & Kaleb, duas produções podem ser uma boa apresentação do queernejo e do trabalho da dupla.

“Quase Nada”

Mel recomenda Quase Nada, título do EP e música carro-chefe de Mel & Kaleb no momento. “A gente se vê muito representado nas letras também. Quase Nada é muito sapatão, isso de ‘a gente se viu quase nada, beijou quase nada’, mas já tá apaixonada”, explica.

“Por Você”

Já Kaleb formou uma conexão com Por Você (Tudo Tudo Bem), lançamento recente que foi também um desafio na hora da produção. “Eu nunca tinha cantado piseiro antes. Quando mandaram as primeiras produções da música, eu pensava: ‘não tá batendo’. Mas foi uma surpresa muito grande depois que ficou pronta, o clipe também acabou de ficar pronto, e eu amei. Eu tô muito apaixonado por esse momento de Mel & Kaleb”.


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