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Luta de classes, saúde mental e identificação: por que os livros de Sally Rooney conquistam tanto?

Mestrando em Teoria Literária e fãs da autora de “Pessoas Normais” refletem sobre os temas abordados por ela em suas obras

 

Sinceridade, sensibilidade e sutileza. Essas são as três palavras que a estudante de Jornalismo Vitória Prates, de 19 anos, usaria para definir Sally Rooney. Se você acompanha o mundo da literatura contemporânea, é quase impossível que não tenha ouvido esse nome. A autora de somente 30 anos conquistou a crítica e o público – em especial, os mais jovens – com seus livros. Seu maior sucesso é “Pessoas Normais”, publicado no Brasil pela Companhia das Letras e transformado em série pela BBC, em parceria com a Hulu.

Jornais e críticos literários já descreveram Rooney como uma espécie de “voz da geração milllenial”. Para Carolina Elena Sebastião, estudante de Letras de 24 anos e criadora de um perfil dedicado à literatura, o Breakfast Literary Club, a razão para isso é a própria idade da autora: “Normalmente, quando você pensa em histórias que falam sobre jovens adultos, a pessoa [por trás do livro] já é um pouco mais velha. Acho que, por ela ser tão jovem, consegue fazer com maestria o que muitos autores não conseguiriam, porque ela está vivendo isso”.

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Carolina Elena é estudante de Letras com foco em tradução. Foto: Acervo Pessoal

A escritora tem mais dois livros publicados além de “Pessoas Normais”: seu romance de estreia, “Conversas Entre Amigos” (Alfaguara, 2017), e “Belo Mundo, Onde Você Está?”, seu lançamento mais recente, que chegou por aqui em setembro deste ano, também pela Companhia das Letras. 

Os três livros acompanham a vida e o amadurecimento de jovens adultos passando por situações comuns da vida. A Irlanda, terra natal de Rooney, é onde todos os seus livros são ambientados e a autora já até declarou que, se você não quer ler sobre jovens irlandeses, é melhor não ler seus livros

Mauro Paz, escritor, roteirista e mestrando em Teoria Literária, acredita que é preciso ter cuidado ao se referir à autora como porta-voz de toda uma geração justamente por isso: “O mundo hoje tem um movimento globalizante de ter muitas coisas parecidas, mas ele também tem muitas diferenças. Ser um jovem millennial em formação no Brasil é muito diferente de ser um na Irlanda”. 

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Mauro Paz é autor dos livros “Entre Lembrar e Esquecer”, “São Paulo CidadExpressa” e “Por Razões Desconhecidas”. Foto: Acervo Pessoal

No entanto, mesmo com as diferenças regionais, a maior parte das pessoas que se identificam com os romances da autora tendem a olhar para a forma como ela descreve as minúcias da relação entre os jovens. O foco está em temas que afligem a juventude: dificuldade de se comunicar, a relação com as redes sociais, sexo e sexualidade e saúde mental. Até mesmo quando Rooney faz reflexões mais políticas, como a luta de classes e o papel da mulher – muito presentes nos livros – ela o faz através da hierarquia nas relações interpessoais.

O romance de formação e a identificação de uma geração

“O que eu mais acho interessante do livro é a lógica do romance de formação escrito de uma maneira dupla”, diz Mauro sobre “Pessoas Normais”. A obra é o objeto de estudo de seu mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Ele explica que o romance de formação é um sub-gênero que nasceu a partir do livro “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister”, de Goethe, no qual o autor passa a trazer a educação para o centro da obra.

“A lógica do romance de formação é você pegar um indivíduo que está em uma época chave de entender o seu lugar na sociedade, que é, basicamente, sair da adolescência para entrar na fase adulta, e explorar como isso acontece”, explica. 

Em “Pessoas Normais”, essa jornada de amadurecimento acontece através da perspectiva de duas pessoas, os protagonistas Marianne Sheridan e Connell Waldron. A primeira é uma menina considerada estranha por todos na escola, enquanto ele é um menino popular e cheio de amigos. A virada está no fato de que Connell é de uma classe social muito mais baixa e sua mãe trabalha como diarista na casa da família de Marianne, que é muito rica. Os dois engatam um romance em segredo, pois Connell tem vergonha de ser visto com ela. 

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Pessoas Normais, na edição da Companhia das Letras. Foto: Arquivo Pessoal/Canva

“No livro, eles usam muito a expressão ‘se sentirem esquisitos’ por serem pessoas normais”, aponta Mauro. Ele diz que essa controvérsia pode ser vista até mesmo na capa do livro, em que duas pessoas estão enroladas dentro de uma lata de sardinha, “como se o normal fosse estar dentro de um parâmetro”. Mauro também explica que, durante o romance, os protagonistas se espelham um no outro para conseguirem realizar essa ruptura presente no romance de formação.

Durante todo o livro, Marianne e Connell enfrentam muitos problemas relacionados à dificuldade que têm de se comunicarem um com o outro. Para Carolina, essa falta de comunicação é uma marca de parte da nova geração de jovens adultos. “Temos pais que exigiam muito da gente, principalmente por terem um passado muito diferente do nosso”, explica. “Criaram uma geração que não sabe se comunicar, não sabe expressar sentimentos e que precisa de validação, seja na vida amorosa, acadêmica ou com os pais”.

O fato dessas marcas serem trabalhadas nos livros de Sally Rooney é um dos motivos pelo qual Carolina acredita que exista uma identificação com os romances: “Embora tenham muitas pessoas que não se identifiquem, tem uma gama muito grande de pessoas que conseguem se ver nos personagens dela justamente por conta disso”. 

Vitória Prates concorda com essa visão. “Acho que ela realmente consegue transmitir o que a gente passa de ter sido criado em uma vida super tecnológica, o quanto isso afeta as nossas relações sociais, interpessoais e o quanto isso afeta a gente”, diz. A jovem conta que uma de suas coisas favoritas em “Pessoas Normais” é a sutileza com a qual Sally Rooney aborda diversas questões. 

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Vitória Prates é estudante de Jornalismo e seu livro favorito é “Pessoas Normais”. Foto: Acervo Pessoal

Sexualidade e saúde mental

Nesse sentido, outro tema muito retratado por Sally Rooney é a questão da sexualidade nesse período da vida. “Nunca li um romance que deixa o sexo tão natural como o dela”, aponta Vitória, sobre “Pessoas Normais”. Para ela, livros voltados para o público jovem adulto costumam abordar o sexo de forma irreal, porém, ela afirma que Rooney foge desse padrão ao descrever as cenas de forma não romantizada.

Mauro afirma que Rooney foge da ideia de um sexo performático. “Da forma como ela trata em “Pessoas Normais”, é muito mais o sexo como uma forma de comunicação”, explica. Além disso, o especialista pontua que a escrita da autora está inserida em um momento de ruptura na Irlanda, um país muito católico e que, por muito tempo, lidou com os casos de pedofilia na Igreja. 

Por outro lado, Mauro acredita que a escritora permanece alguns passos atrás na questão da diversidade, já que a maioria das relações amorosas exploradas por ela em seus livros são heteronormativas. No mesmo caminho, Carolina comenta que o romance de Rooney com que mais se identificou foi “Conversas Entre Amigos”, que possui uma protagonista bissexual.

No romance, a autora conta a história de Frances, uma mulher que apresenta poesias com a sua amiga e ex-namorada Bobbi. Quando elas conhecem Melissa e Nick, um casal mais velho com uma relação complexa, a protagonista acaba entrando em uma relação com Nick, enquanto Bobbi desenvolve uma afeição por Melissa. 

Nesse livro, assim como em “Pessoas Normais” e “Belo Mundo, Onde Você Está?”, a questão da saúde mental também é muito presente. Mauro acredita que falar sobre isso é necessário por ser “uma característica dos nossos tempos” e conta que também aborda o assunto em seus livros, já que, para ele, “não tem como fugir, são coisas que nos afetam”.

O escritor comenta que os problemas psicológicos que os personagens passam nos livros estão diretamente relacionados com a dificuldade de comunicação trabalhada por Sally Rooney. Carolina também aponta a ironia dessa situação retratada pela autora: “É muito engraçado porque a nossa geração sempre fala em saúde mental, em ir no psicólogo, mas a gente tem uma dificuldade gigantesca de falar e se comunicar”. 

“Eu gostaria que as pessoas copiassem a maneira que ela representa a depressão e ansiedade”, afirma Vitória. Para a estudante, a forma com que a autora trata essas questões em “Pessoas Normais” é muito responsável. 

Luta de classes

Algo que também é quase intrínseco à obra de Sally Rooney é uma abordagem indireta da luta de classes. A autora, que já se declarou marxista, trata esse tema através dos relacionamentos entre os próprios personagens, refletindo como as diferenças de classe podem afetar a convivência.  

Essa dualidade é explorada em todos os seus livros. Em “Pessoas Normais”, por meio de Marianne e Connell, e em “Conversas Entre Amigos”, pela hierarquia na relação entre Frances e os outros personagens, que possuem poder aquisitivo muito maior. Já no livro mais recente, “Belo Mundo, Onde Você Está?”, essas nuances também ficam implícitas em todo o livro.

As protagonistas da história são Alice e Eileen. A primeira, uma escritora de sucesso que vai morar em uma cidadezinha na Irlanda e acaba conhecendo um homem, Félix, em um aplicativo de namoro, e a segunda, uma assistente editorial que acredita que sua vida esteja estagnada e que engata um relacionamento com Simon, um amigo de infância alguns anos mais velho. A forma como o dinheiro afeta a relação entre os quatro fica claro em todo o romance, além de muitas reflexões serem feitas nas trocas de e-mail entre Alice e Eileen. 

“Acho muito legal ela fazer isso através de relações porque quando a gente fala sobre críticas sociais e essa hierarquia, a gente não pensa sobre relações próximas da gente. Pensamos em nós e o governo e nem sempre é assim, isso existe em qualquer tipo de relação que a gente tem no dia a dia”, afirma Carolina. 

“Eu acho que um dos pontos mais positivos é a luta de classes”, diz Vitória. “É extraordinário porque, [em “Pessoas Normais”], a gente percebe no Connell e na Marianne que eles oscilam constantemente em posição de poder. O Connell é superior a ela emocionalmente e, ao mesmo tempo, ela está em uma posição de poder social, porque ela é muito mais rica que ele”. 

Para Mauro, a luta de classes é um dos grandes temas de hoje. “O interessante de pensar é que muitos autores que se tornam best-sellers acabam virando mais “chapa-branca” e ela não se tornou”, ele comenta. O escritor afirma que a ideologia do autor e a sua obra são coisas inseparáveis:

“O romance nada mais é do que uma tentativa do autor de criar um mundo que faça algum sentido, que tenha algum equilíbrio, mas que mesmo assim está quebrado”. 

Linguagem, adaptações e tendências

Para Vitória, um dos motivos que leva os leitores a se identificarem com os personagens é a “prosa intimista” de Sally Rooney. A autora, que não faz uso de travessões e nem de aspas nas falas, já explorou diferentes tipos de narração, porém mantém uma linguagem muito característica. Carolina e Mauro acreditam que a maneira como ela escreve chega a se assemelhar com um fluxo de consciência. 

Em obras com tanta individualidade, é um desafio converter a linguagem escrita para as telas. No entanto, Vitória se declara muito satisfeita com a adaptação de “Pessoas Normais”, apesar de ter sentido falta da narração. Mauro, que também é roteirista, diz que isso é um obstáculo, mas que “conseguiram construir isso através do tempo e do silêncio dos atores”. Ele pontua que esse tempo mais “demorado” é um dos pontos altos da série e é algo que vai contra o que muitas produções estadunidenses fazem. 

Carolina afirma que também se questionou sobre a falta de um narrador, mas que a parte de não comunicação foi muito bem trabalhada na série por conta das escolhas de filmagem, que focaram muito no rosto dos protagonistas, de modo que se percebia o que estava errado. “Eu acho sensacional, tanto a fotografia, quanto o elenco, que foi escolhido a dedo”, comenta. Ela também se declara muito ansiosa para a adaptação de “Conversas Entre Amigos”, que tem previsão de estreia para o ano que vem. 

Com o sucesso dos livros, das adaptações e de tantas discussões geradas por eles, é difícil pensar que a maneira da autora de conduzir histórias não será um modelo no futuro. É o que afirma Vitória: “Quando você ganha um posto de tanto destaque, no público e na crítica, é impossível não virar referência. Eu acho que cada vez mais as pessoas vão escrever os livros tendo em mente como a Sally Rooney construiu”.

Imagens: Companhia das Letras (divulgação) / Canva

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