Professores e dançarinos de Voguing explicam as origens e a importância do estilo para pessoas queer e para o mundo da dança
O público se reúne em volta de dançarinos que, com muita energia e roupas descoladas, realizam expressivos movimentos com as pernas, as mãos e os braços ao som de batidas que misturam pop, funk e música eletrônica. Entre os aplausos e gritos da plateia, os dançarinos são avaliados pelos jurados nas batalhas de Vogue, também conhecido como Voguing, um estilo de dança nascido da comunidade LGTBQIA+ negra e latina.
Para muitos, o single “Vogue”, de Madonna, foi o primeiro encontro com o Voguing enquanto dança e cultura. Outros podem conhecer o movimento graças a produções mais atuais, como a série “Pose”. Mas nem todos sabem sobre a origem deste estilo, que se deu muito antes. O Vogue surgiu na década de 1960, mas tornou-se popularizado apenas nos anos 80, na cena LGBTQIA+ de Nova York, mais especificamente no bairro de Harlem. São grandes referências do Vogue os dançarinos Willi Ninja, Javier Ninja e Archie.
Esses grupos nova-iorquinos queer se juntavam nas chamadas famílias, que se uniam para lutar pelos direitos básicos. Os membros assumiam o mesmo sobrenome, formando as “Houses”, ou Casas. As mães ou pais de cada casa ofereciam uma espécie de família de acolhimento para muitos membros da comunidade que eram socialmente marginalizados, fosse pelo gênero, pela orientação sexual ou pela etnia. “O conceito das casas, da mãe e do pai da casa também tem muita importância, porque as pessoas que foram rejeitadas pelas suas famílias foram procurar um abrigo, uma comunidade e acharam”, diz Pasha Gorbachev, dançarino, coreógrafo e professor de dança.
Cultura ballroom
O vogue é muito mais do uma dança: é uma cultura, que pertence à comunidade ballroom. Originado também nos anos 60, em Nova York, o ballroom se espalhou pelo mundo como um movimento político, de ocupação de espaços e de celebração à diversidade. É um lugar de troca de afetos, acolhimento, conscientização, politização e acesso aos serviços de proteção ao HIV.
“Dentro da comunidade, além de fazer o Voguing, a gente discute sobre várias questões LGBTQIA+ e sobre ‘corpas’ pretas, periféricas e trans. É importante falar que o Vogue veio desses corpos, que são marginalizados. São corpos que a gente tem que ter muito respeito e entender que é dali que surgiu tudo aquilo que a gente reproduz hoje”, destaca Guilherme Freitas, professor, bailarino e coreógrafo da drag singer Lia Clark.
Freitas entrou para o mundo da dança aos 14 anos, mas foi apenas em 2016 que teve seu primeiro contato com o Voguing. Um ano depois, conheceu Félix Pimenta, um pioneiro legendário da cena Vogue de São Paulo, atualmente pai da House of Zion. Foi a partir de Pimenta que passou a frequentar o movimento ballroom. “Tem toda uma comunidade e uma história por trás, a comunidade ballroom é um movimento gigante de pessoas LGBTQIA+ e dentro dela a gente tem o voguing”, aponta o bailarino.
A cultura ballroom é um espaço de arte, família, criatividade e dança. “Para as pessoas LGBTQIA+, a vivência dentro da ballroom é de extrema importância, essa comunidade transforma vidas”, relata Guilherme Freitas. Seu desejo é que todas as pessoas queer experienciem essa cultura para conhecer o “Vogue real”. “Não é só a movimentação e o close. O Voguing é uma dança política”, ressalta.
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A evolução do Vogue
A dança foi inspirada no universo da moda, especialmente nas poses que as modelos faziam em revistas, como na Vogue. Com o tempo, o Voguing foi se desenvolvendo e surgiram novas versões. O chamado “Old Way” utiliza-se mais a técnica de “arms control” (controle de braços), que traz linhas sólidas, simetrias e ângulos nítidos. São poses estáticas que transitavam de umas para as outras, como se o público estivesse folheando as páginas da revista Vogue. Segundo, Guilherme Freitas, este estilo também tem referências das artes marciais.
Já no “New Way”, o foco é mais voltado para “hands performance” (performance de mãos). Este introduziu a fluidez e flexibilidade ao Voguing. Existem várias outras vertentes dentro do estilo, como o Vogue Femme, que dá destaque a movimentos mais dramatizados, com posturas delicadas a até com acrobacias. De acordo com Freitas e Gorbachev, existem cinco elementos principais na dança do Voguing: catwalk, duckwalk, floor performance, hands performance e spin and dip.
“Catwalk é uma técnica de andada na passarela da cultura ballroom. A comunidade pegou como inspiração as passarelas do mundo da moda, da Fashion Week, e modificou, tornando essa andada mais desafiadora, com mais formas”, explica Pasha Gorbachev. O duckwalk é como a catwalk, mas no plano mais baixo possível, é o movimento de agachar até aos calcanhares, enquanto se caminha ao som da música. Floor performance são os movimentos realizados no chão. “Hands performance é uma técnica de braços bem expressiva, você conta a história com os seus gestos”, diz o dançarino. Por fim, o spin and dip é girar e “cair drasticamente”.
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Voguing como liberdade de expressão
“O Voguing, para mim, significa liberdade de ser quem eu sou, de poder viver da melhor forma esse corpo político e mostrar que eu estou vivo. Enfim, são várias questões de empoderamento. Quando eu estou dançando o Vogue, eu estou vivendo o meu ‘eu’ de verdade”, aponta Guilherme Freitas. Para Pasha Gorbachev, a liberdade de expressão também foi o que despertou seu interesse pelo estilo. “Como gay na Rússia, eu estava nas profundezas do armário. A dança surgiu para mim como algo de poder e autoconfiança, que estava faltando muito na minha personalidade”, relata.
Nascido na cidade russa Yaroslavl, Pasha encontrou o Voguing por acaso, aos 19 anos: no caminho para uma aula de artes marciais, pegou o caminho errado e acabou em um estúdio de dança. “Meu contato com Vogue naquela época foi apenas com o ‘arms control’, que tem as linhas bem definidas, bastante demanda para a coordenação motora, execução limpinha. Não é nada expressivo, nada delicado, nada que possa remeter ao feminino”, conta. Desde sempre teve interesse no Vogue Femme, que traz movimentos mais sutis, curvados e narrativos. Porém devido, ao contexto homofóbico da Rússia, não tinha essa possiblidade, o máximo que podia fazer era o “arms control”.
Aos 22 anos, conseguiu um green card para os Estados Unidos e comprou uma passagem só de ida para Nova York. Lá conheceu um professor que o abriu para o universo do Vogue Femme. “Comecei a me expressar do jeito que o meu corpo sempre queria, me sentindo uma pessoa ainda mais poderosa, principalmente através da provocação que eu jogo para o público quando meu corpo de homem cis começa a executar todos os gestos mais delicados”, diz Pasha.
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Segundo ele, essa possibilidade de provocar os padrões da sociedade é um dos aspectos mais interessantes sobre a dança. “Para mim, o vogue é um desafio ao binarismo, liberdade de expressão corporal e luta. Hoje em dia, eu entendo o gênero como algo fluido, que está sempre em transformação e que não precisa ser colocado dentro da caixa. A dança vogue expressa essa fluidez”, relata.
Também acredita que é uma forma de combater as opressões contra as comunidades LGBTQIA+, negra e latina, que, infelizmente, ainda são recorrentes nos dias de hoje. Além disso, Pasha Gorbachev conta que encontrou no Vogue uma forma de terapia para aceitar quem ele é. “O Voguing ajudou muito a eu começar a me ver diferente, sem me julgar e sem ligar ao julgamento das outras pessoas”, diz. Ele não é o único. Pasha relata que outros alunos já foram até ele procurando a dança como uma terapia. “Fazer aula ou conhecer a cultura ballroom ajuda a libertar a pessoa”, destaca.
Para conhecer mais
Existem diversas produções que retratam o Vogue, a comunidade LGBTQIA+ e a cultura ballroom para quem deseja aprender mais sobre esse universo. Guilherme Freitas separou três dicas: um documentário, uma série e um reality show. Confira!
Paris is Burning
Dirigido por Jennie Livingston e lançado em 1990, o documentário “Paris is Burning” foi fundamental para a popularização do Vogue. Nele, é apresentada a cultura dos bailes gay de Harlem, destacando a cena Drag Queen nova-iorquina e a dança Voguing. Gravando a comunidade LGBTQIA+ em diferentes fases da década de 80, o longa mostra uma cultura resiliente, criativa e inspiradora. Já recebeu uma série de prêmios, incluindo o de Melhor Documentário da National Society of Film Critics e o prêmio Glaad Media.
Pose
A série “Pose” retrata o cenário LGBTQIA+ afro-americano e latino-americano da cidade de Nova Iorque. Apresenta a cultura ballroom entre os anos 80 e 90, onde os personagens em destaque são dançarinos e modelos que competem por troféus e reconhecimento. Para ajudar a lidar com os preconceitos da época, eles se apoiam em uma rede de famílias escolhidas conhecidas como Casas. Criada por Ryan Murphy, Brad Falchuk e Steven Canals, a série foi lançada em 2018 e conta com a participação de personalidades renomadas, como Billy Porter. A primeira temporada foi muito aclamada pela crítica e a série recebeu diversos prêmios posteriormente, entre eles, o Globo de Ouro de Melhor Série Dramática.
Legendary
Lançado em 2020 pela HBO Max, “Legendary” é um reality show de competição de Voguing. São apresentadas oito Casas de Vogue, cada uma composta por cinco dançarinos e o líder, que é o responsável da Casa. A que mais se destacar nas competições é declarada a campeã e leva o prêmio de 100 mil dólares. O show é essencial para conhecer melhor as batalhas de Voguing, o conceito das Casas e da cultura ballroom.
Pasha Gorbachev e Guilherme Freitas também indicaram vários artistas e organizações que são muito importantes na cena do Vogue para seguir e acompanhar nas redes sociais. Confira!
- Félix Pimenta
- Brazillian Kunty
- Eduarda Kona Zion
- Luna Ákira
- Yamakasi Velvet Zion
- Ballroom SP Oficial
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