Cady, personagem principal do filme "Meninas Malvadas", em fundo laranja e ao lado de ícone de cinema

A representação da mulher nas comédias românticas

 

Apesar de serem produções de sucesso, as comédias românticas muitas vezes retratam a mulher de forma objetificada ou idealizada – e por isso é essencial pensar sobre suas representações

 

Para os fãs de comédia romântica, enfrentar o dilema de escolher entre “10 Coisas Que Eu Odeio Em Você”, “Para Todos Os Garotos Que Já Amei” ou “As Patricinhas de Beverly Hills” é só um dos processos naturais antes de relaxar por completo, fugir da realidade e passar por uma imersão completa na narrativa do filme. Subgênero cinematográfico que atrai muitos fãs por sua mescla literal entre comédia e romance, as rom-coms são filmes que apresentam, em geral, a história de um casal principal que passa por idas e vindas de formas variadas até – normalmente – dar certo no final, de uma forma ou outra. 

Apesar de fazer sucesso entre os cinéfilos, esse gênero apresenta alguns pontos válidos de reflexão, que muitas vezes passam despercebidos por quem assiste. Afinal, a intenção das comédias românticas não é focada em despertar o pensamento crítico ou estimular um senso político mais amplo sobre determinados temas. Contudo, dentre os clichês desses romances, é possível observar alguns padrões estereotipados em relação à figura da mulher nas comédias românticas em comparação com as mulheres reais.

Olhar crítico sobre a figura feminina

Personagens principais do filme “Meninas Malvadas” | Imagem em domínio público/Canva

Para Ingrid Mariz de Andrade, recém formada em Comunicação Social com especialização em Jornalismo pela UFRJ, a conexão com as comédias românticas foi além das telinhas e virou tema do TCC, seu Trabalho de Conclusão de Curso da faculdade. Entretanto, Ingrid lançou um olhar mais crítico e aprofundado sobre uma questão específica: a subjetividade e sexualidade femininas em comédias românticas. “Comédias românticas sempre foi algo que eu consumi muito, e de certa forma me moldou muito também. E um dos maiores aprendizados que eu tirei da UFRJ foi de sempre ter esse movimento de estranhamento em relação àquilo que me parece muito familiar, que você está muito acostumada, porque em geral são os objetos que mais te moldam e trazem referências para nossa própria perspectiva”, relata a jornalista. Assim, ela decidiu destrinchar a forma com que a figura feminina era retratada a partir desses filmes, buscando paralelos com a figura da mulher em outros períodos e culturas, como a Grécia Antiga, o cristianismo e, por fim, a Idade Moderna. 

Ingrid Mariz, autora do TCC “Subjetividade e sexualidade femininas nas comédias românticas” | Imagem: arquivo pessoal

Segundo Ingrid, esse foi um grande exercício de análise, e quase uma espécie de terapia. “Assim como foi pra mim, acho que seria para quase todas as mulheres que consomem esse tipo de conteúdo, e talvez não têm a dimensão do tipo de mensagem que a gente tá absorvendo de certa maneira e formando nosso imaginário sobre quem a gente é, quem a gente pode ser, como a gente se relaciona com a nossa ‘feminilidade’ e sexualidade, seja lá o que isso for.” 

A protagonista e seu arco de “redenção”

Em seu estudo, Ingrid Mariz utilizou como objeto de análise os filmes “A Mentira” (2010), estrelado por Emma Stone, e o clássico “Meninas Malvadas” (2004), com Lindsay Lohan e Rachel McAdams. A partir das histórias, a estudante percebeu um ponto em comum: a presença de uma narrativa em que a mulher passava por uma transformação, uma mudança de personalidade e modo de agir, que trazia um problema para a história capaz de ser resolvido apenas com sua retomada ao estado inicial e um grande pedido de desculpas.

“Tanto em ‘A Mentira’, em que isso acontece com a protagonista, a Olive, e também em ‘Meninas Malvadas’, com a Cady, é exatamente esse mesmo processo. Elas começam como meninas ‘tranquilinhas’, que não têm muitos amigos, e a partir do momento em que elas têm uma certa expansão, de tentar se entender, de se vestir de uma maneira mais ‘provocativa’, no jeito que a gente conhece como sendo mais provocativa, é o momento em que tudo começa a dar errado”, comenta Ingrid.

Essa submissão da mulher em relação à sua própria personalidade e ao contexto em que está inserida, especialmente em relação à figuras masculinas, também é algo que Clara Teck Balbino, estudante de Publicidade e Propaganda, percebe como um ponto negativo e fora da realidade das mulheres na sociedade. “Ao assistir uma comédia romântica, fica bem explícito a maneira como as mulheres são sempre as submissas que correm atrás de pares românticos, e que suas vidas giram em torno apenas de agradar os homens, mesmo que não pares românticos, em geral. Na vida real, nós mulheres temos diversos outros interesses e somos muito mais donas de nossas vidas do que como retratado nos filmes.”

Clara Teck Balbino, estudante de Publicidade e Propaganda. | Imagem: arquivo pessoal

Mudanças no discurso e o dilema dos remakes  

Atualmente, as comédias românticas mais modernas, lançadas pelos streamings ou nos próprios cinemas, porém mais recentemente, já passam por um processo de mudança nessa representação da mulher ligada à submissão, inferioridade e muitas vezes de objetificação, colocando as personagens em posições de poder e de forma mais independente.

Para Ingrid, isso acompanha uma mudança nos discursos da própria sociedade, seguida, assim, pelo cinema: “A gente está começando a falar sobre isso, as mulheres estão abrindo esse diálogo. Então se você faz um produto claramente voltado pras mulheres, você precisa adaptar isso às demandas. A gente já entende hoje em dia que precisamos de mais diversidade, de uma protagonista mais forte, e talvez precise subverter um pouco a relação de dependência e necessidade com o homem. Existe esse movimento de narrativa de tentar ao menos modificar algumas questões pré-existentes, para ele ser mais atual e moderno”, explica. 

Apesar disso, nesse cenário, nem todas as produções conseguem alcançar um certo desprendimento em retratar a mulher de forma diferente dos enredos das comédias românticas dos anos 90 e 2000. Para quem já passou por uma mudança no discurso, reproduzir essa essência nos dias atuais pode não agradar muito. Maria Fernanda Zago, estudante de Direito e fã de comédias românticas, relata que os acontecimentos de “A Barraca do Beijo 3” (2021), último filme da trilogia de filmes original Netflix, gerou incômodo.  “Tem um clichê de comédia romântica que eu não gostei muito, que é o do filme Barraca do Beijo 3. Foi alvo de muitas críticas, e acho que construtivas, porque a protagonista fica entre tomar uma decisão pelo melhor amigo e tomar uma decisão pelo namorado, mas e ela? Acho que faltou pensar nela mesma e decidir por ela. E além disso, teve um desfecho inesperado, e decepcionante para esse conjunto de filmes”, pontua Maria Fernanda. 

Maria Fernanda Zago, estudante de Direito | Imagem: arquivo pessoal

Uma outra tentativa moderna de ressignificar algumas comédias românticas antigas é a produção de remakes, ou seja, uma refilmagem e recriação de uma história que já existe em outro filme de forma diferente. Foi o que aconteceu com “Ela é Demais” (1999), comédia romântica estrelada por Freddie Prinze Jr. e Rachael Leigh Cook. A produção fez muito sucesso e se tornou um dos clássicos do gênero produzido nos anos 90; entretanto, atualmente, é possível reparar que o filme trabalha com alguns estereótipos de feminilidade que não eram discutidos em seu lançamento.

A história se baseia em uma aposta entre amigos, em que o protagonista, Zach Siler, teria que transformar Laney Boggs, uma garota artista, tímida, não popular – e fora do padrão de beleza e interesse das figuras masculinas do filme – em rainha do baile da escola. O final da história você já sabe: eles se apaixonam, e, passado o clímax do enredo, tudo termina bem entre o casal.

Em 2021, a Netflix lançou o remake de “Ela é Demais“, intitulado “Ele é Demais“, mostrando justamente a história sob uma ótica inversa: a aposta é feita pela garota popular e requisitada e suas amigas, e envolve a transformação de um garoto nada popular e nerd da escola no próximo rei do baile.

Ingrid assistiu ao filme e enxerga “Ele é Demais” como um mau exemplo de remake, que não colabora para uma subversão de estereótipos que podem ser questionados no filme original. “Pra mim, ele é uma grande maquiagem. É o ‘vamos pegar coisas muito óbvias pra fazer de conta que estamos fazendo um filme super moderno e atual’, quando vários dos conceitos básicos ainda estão ali”, comenta. 

A jornalista ressalta que os remakes possuem potencial, ao passo que podem ressignificar uma história com problemáticas: “Talvez até funcione, tendo um bom roteiro dá pra ser aproveitado de uma maneira nova”, diz. Mas, em sua visão, investir em novas narrativas possui um significado ainda maior, e é capaz de trazer um impacto real na mudança da figura da mulher nas comédias românticas: 

A gente sabe que vários dos filmes dos anos 2000, anos 90, a gente vai ver hoje e vai ter um estranhamento, mas não acho que eles devem ser cancelados, pois foram feitos dentro do que podia ser feito naquela época em relação ao que era pensado e falado. Então algumas obras eu acho que tem espaço pra modernizar, mas também fico preocupada de se perder uma certa essência e que tinha seu valor na época. Vamos trazer novas referências, novas protagonistas, novas histórias, e não fazer quase uma ‘reparação histórica’ no que já foi criado, sem ter que modificar o tempo todo o que já foi feito. Cada obra foi feita dentro do que podia ter sido feita dentro do seu tempo”, diz.

É o fim das comédias românticas?

Se você chegou até aqui prestes a mudar toda sua lista de filmes favoritos e títulos salvos nas plataformas de streaming, pode ficar tranquilo. A grande questão de discutir sobre a forma como a mulher é representada nas comédias românticas é, justamente, fazer com que o olhar do telespectador possa se tornar mais crítico em relação ao que consome, não adotando certos modelos e padrões de atitude como uma referência para a vida real – e entendendo os problemas por trás da base de algumas produções, quando necessário. 

Ingrid Mariz defende que as comédias românticas não deveriam passar por um “cancelamento” devido aos seus clichês, mas que a chave para essa representação não atuar de forma negativa é desenvolver um olhar mais crítico sobre as problemáticas nos estereótipos mostrados.

A minha grande questão é que as comédias românticas tem seus clichês, e tudo bem elas terem seus clichês. Acho que o movimento mais importante é a gente entender o que está consumindo, e isso não significa que a gente não possa mais consumir esse tipo de filme, ou que esses filmes tenham que ser absolutamente subversivos, porque talvez isso fuja muito da proposta do que eles são. Mas como a gente, como espectadora, consegue consumir isso de uma maneira muito mais consciente, sem deixar essas mensagens passarem sem um filtro antes do que a gente tá vendo. E, claro, ter ali adaptações necessárias no roteiro pra dar uma certa ‘permissão’ maior para as mulheres terem mais força, ter uma posição mais de poder no filme, ou sem essa regrinha do final de pedir desculpas”, finaliza Ingrid.

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